ELIS
DIREÇÃO: Hugo Prata
ELENCO: Andréia Horta, Gustavo Machado, Caco Ciocler, Lucio Mauro Filho, Zé Carlos Machado e Ícaro Silva
Cinebiografia da cantora Elis
Regina, a obra apresenta momentos marcantes de sua vida, desde a sua chegada ao
Rio de Janeiro até a conquista do estrelato. O filme também passa pelos dois
casamentos da artista e seus momentos mais críticos.
“Não quero lhe falar, meu
grande amor, das coisas que aprendi nos discos...”. Foi com a interpretação da
mais marcante canção da homenageada (“Como Nossos Pais”, no caso), que Elis, do
diretor Hugo Prata, teve o seu início. A princípio, desconfiei e não gostei,
acredito que se tratava da música perfeita para encerrar uma grande
cinebiografia, como forma de coroar essa que é considerada a maior cantora da
história do Brasil. Enfim, deixemos esse detalhe para depois.
Se tem uma palavra que define
Elis é “coragem”, e não falo somente da personalidade da protagonista que é algo
incontestável, mas digo pela autenticidade de Hugo Prata em expor diversas
situações, que reforçam teses históricas contestadas e ainda afrontar diversas
ideologias atuais. Elis Regina já tinha uma carreira de cantora, embora
modesta, antes de chegar ao Rio de Janeiro. O crescimento para ela era algo
natural, mas ela queria ser a melhor do país e tinha plena consciência de sua
capacidade para tal. Quem, naquele período, ousaria discordar do sucesso estrondoso
de Nara Leão e seu apelido de “coqueluche”, e ainda enfrentar de igual para
igual os empresários poderosos da época? Poderia ser um prato cheio para um
suicídio profissional, mas o filme trabalha bem a revolta dos afetados com o
constatar de que Elis tinha um grandioso talento, que não deveria ser
desperdiçado, e, como a própria película chega a ditar: talento esse bem
superior ao de Barbra Streisand.
O que mais assusta para
personalidade forte da cantora, é que grande parte de Elis, se passa no período
da ditadura militar, desde os primórdios (mais precisamente). E assim, a
película transparece a figura de uma mulher destemida ao extremo, para aquela
época, e assim, o roteiro de Luiz Bolognesi, Vera Egito e do próprio diretor,
acaba sendo uma aula para as discussões políticas de 2016, de que intervenção
militar não servia apenas para punir duramente criminosos, visto que todos
estavam em sistema de vulnerabilidade a ela; além de enaltecer o discurso
feminista, mostrando que ele não entra em oposição ao machismo, e dita a mulher
como um ser digno de diretos iguais, que pode opinar em meio a muitos marmanjos,
e que não é obrigada a engolir diversos abusos por parte dos outros, ao ponto
de inclusive decidir trabalhar quando e como bem entender, além de destruir uma
preciosa coleção de discos do Frank Sinatra, pertencente ao marido Ronaldo
Bôscoli.
Elis é um filme que começa tão
forte e meteórico quanto a carreira e o temperamento da protagonista, que, por
sinal, mesmo sabendo de seu estrelato e reinado, era humilde o suficiente ao
valorizar o fato de estar cantando no mesmo palco de Diana Ross ou Edith Piaf, mas jamais
cogitava a ideia de deixar a peteca cair. Ela subia lá, dava um show e mostrava
que não se intimidava; e somado a isso, diante de uma imprensa estrangeira, durante
uma apresentação em Cannes, chamava os militares de gorilas, sem o mínimo
temor. Após este momento, o filme passa a ter uma queda, ao tornar-se arrastado
e desinteressante, e num ato, foi esquisita a maneira tardia com que o comando federal
da época tirou satisfação sobre suas declarações na França. Mesmo assim, neste
meio tempo, a obra surpreende ao expor um caso extraconjugal dela com o crítico
musical Nelson Mota, sem criminaliza-la, visto que a obra também não esconde o
adultério de Bôscoli.
Sabendo superar algumas
fragilidades estruturais, o filme acertadamente constrói uma imagem de mocinha
guerreira de Elis Regina, conseguindo inclusive fazer com que o espectador
fique compreensivo diante de seus defeitos. Realmente ela não fugia da raia,
mas triscar em seu ponto fraco (seus filhos) poderia ser crucial para numa
mudança de postura. Dessa forma, Elis exibe uma inédita participação mais
intensa da cantora com o regime militar, que na classe artística não se
limitava a Chicos, Caetanos e Gilbertos. O diferente é que neste caso há o ponto de que outrora ela era uma crítica a forma de governo, mas aí passou a se apresentar
artísticamente para os militares – o que transformou-se em um verdadeiro
escândalo entre os cantores, que não admitiram tal atitude. Elis Regina se
defendia, alegando ameaças a seus filhos, enquanto a entrada do Henfil na trama
(citado em sua linda canção "O Bêbado e o Equilibrista"), mostra uma classe que
não se intimidou em lutar por uma revolução no país, mesmo diante de diversas
ameaças. A vida de Elis passa a ser de pura reflexão, e assim o desenrolar
desse contexto finca numa brilhante metáfora proposta pela produção do longa,
que remete ao pensamento de Dalton Trumbo no período do macarthismo, no qual
podemos utilizar para a classe artística brasileira durante a ditadura: “Não há
culpados, nem inocentes. Todos foram vítimas” – me refiro somente aos artistas,
é claro.
Sobre o elenco que deu vida a
esses personagens que, como diria Fausto Silva, são monstros sagrados da música
popular brasileira, diria que poucas vezes vi um time tão espetacular no cinema
nacional, como em Elis. O que foi a espontaneidade de Ícaro Silva como Jair Rodrigues?
A dureza de Gustavo Machado como Bôscoli? E a esplêndida dramaticidade de Zé
Carlos Machado como Romeu, o pai de Elis? Mesmo encontrando-se diversas performances
estrondosas, ninguém se esquiva de quão perfeita e maravilhosa está Andréia Horta,
no papel da protagonista. Como esse furacão ficou quieto durante anos em programas da Globo? Eficaz, segura, sem deixar passar despercebido nenhum
trejeito da cantora, ao ponto de assombrar (positivamente falando) qualquer um,
expondo com tamanha precisão o sorriso de Elis Regina. Só este fato já dá todos
os méritos a performance dela, porém fiquei na curiosidade sobre como seria sua
atuação, caso ela mesma cantasse. No filme, ela é dublada pela voz original da
cantora. Em contrapartida, seu dançar justifica os apelidos de “pimentinha” e “hélice
regina”.
Voltando ao desconforto que eu
tive ao ver “Como Nossos Pais” sendo interpretada no início, e não no fim, como
eu desejava, relato que os momentos derradeiros do filme são de uma melancolia
ao extremo, visto que não é segredo para ninguém que fim levou Elis Regina, e
como se deu tal fato. Diante disso, tenho que dizer que não encerrar o filme
com a canção supracitada foi uma jogada de mestre do diretor Hugo Prata, que
abriu mão disso para não aumentar o caráter emocional contido naquele desfecho.
Colocar a alegre canção “Velha Roupa Colorida” durante os créditos finais,
serviu para mostrar que apesar de sua trágica despedida, Elis Regina teve uma
vida que foi uma verdadeira festa de tão vitoriosa. O filme, que é dos pilares
deste grande ano para o cinema nacional, além de homenagem, é uma lição de
ideologias, determinações e personalidades que conseguem enaltecer um ser
humano, por mais turbulento que seja o período em que ele vive.
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