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domingo, 20 de setembro de 2020

MULAN

 


MULAN
DIREÇÃO: Niki Caro
ELENCO: Yifei Liu, Donnie Yen, Jet Li e Gong Li


Mongólia e China entram em guerra, e por conta de uma invasão, o imperador chinês determina que cada família deve ceder um homem para o exército. Temendo perder seu pai, já idoso e com a saúde frágil, a jovem Mulan se disfarça de homem, rouba as armas de seu genitor e apresenta-se ao império. Com poderes sobrenaturais protegendo-a, mas querendo convencê-la a desistir da ideia, ela se joga em uma jornada, onde sua vida estará sob risco, dentro e fora de sua tropa.


Uma das grandes apostas da Disney para 2020, Mulan já estava prestes a ser lançado, quando estourou no mundo a pandemia do coronavírus, obrigando a obra a passar por tantos adiamentos, que não restou outra escolha, a não ser a exibição pelo streaming, causando um certo prejuízo em suas finanças. Porém engana-se quem acha que esse foi o único problema que assolou o longa. A ideia de um live action da famosa animação do final dos anos 1990, que foi indicada ao Oscar de Melhor Trilha Sonora, foi bem aceita, reforçando que essa leva da transformação dos clássicos infantis em obras do gênero chegou para ficar. Acontece que essa foi a que teve um processo de criação mais corajoso, ao ir de encontro com os ideais dos grandes fãs, propondo fortes mudanças na trama, como até a de eliminar personagens populares.

O fato é que tão arriscado quanto essas ousadias, é diminuir Mulan previamente por uma certa falta de fidelidade. Por que não aguardar para ver de fato o longa? O filme até tem um prólogo de uma pureza e doçura que nos remetem à película animada, mas logo passa a se sustentar de maneira independente, inclusive buscando tons épicos por estar inserido no contexto de guerra, eliminando canções famosas, sob a justificativa de que não se canta em conflitos. Curiosamente, A Noviça Rebelde, que é um dos melhores e mais famosos filmes da história, passa-se na guerra e é um musical. 

Enfim, analisando Mulan pelo viés desse mal chamado machismo, concorda-se que ele sempre existiu em qualquer lugar, porém ouve sim uma época em que ele era uma unanimidade. Levando-se a sério demais, o longa concebe uma personagem que, a todo custo e desde criança, tenta provar aquilo que jamais convencerá alguém, nem mesmo as mulheres com posturas tão misóginas como as de outros homens, pois os moldes femininos do período são retratados pela obra com um força até de certa forma descomunal, que chegam a ser bizarros os olhares dos que se preocupam com as interpretações por parte dos supostos futuros pretendentes a marido da protagonista.

Ao passo que detém um lindo design de produção e uma fotografia que encanta com uma impressionante paleta de cores, a Disney parece estar perdida na tentativa de trazer para a prática os seus discursos de inclusão. Prova disso é que Mulan nem é dirigido por um ou uma oriental genuíno(a) ou descendente. Tal função é conferida à neozelandesa Niki Caro, que há muito tempo não consegue emplacar um filme de sucesso em Hollywood, após a dobradinha Encantadora de Baleias e Terra Fria, de 2002 e 2005, respectivamente. A trama, que diz querer não se ater a elementos clássicos, claramente segue uma espécie de protocolo da toda-poderosa, ao separar os antagonistas em um habitat e expor seus planos maquiavélicos, enquanto tentam propagar uma certa doçura no personagem central, alocado em uma ambiente pensado por quem acredita na pureza de um lar doce lar intacto. Ora, não foi assim que conhecemos o ódio de Scar diante de Mufasa em O Rei Leão? Não foi assim que conhecemos o ódio de Lotso diante de Buzz LightYear em Toy Story 3? Não foi assim que conhecemos o ódio de Úrsula diante de Ariel em A Pequena Sereia? Assim, o longa já começa a se expor de fato e de direito como infiel, não à animação de 1998, mas aos seus próprios objetivos de 2020.

Perdida com um roteiro fraco, escrito pelos novatos Rick Jaffa, Amanda Silver, Elizabeth Martin e Lauren Hynek, Niki Caro não tem nem noção da vergonha alheia proposta por uma desnecessária cena em que Mulan tenta equilibrar um bule. Ela adentra a trama à guerra sem o mínimo de intensidade e personalidade, como se aquele fosse um conflito qualquer, onde não são exploradas as forças nem de Mulan, tampouco dos demais. Sendo assim, fica bem claro que tudo o que o filme apresentou não foi nada suficiente para convencer de que a protagonista era uma grande combatente, e, para piorar a situação, numa ideia que teve um efeito tragicamente contrário, a força da mulher na guerra está sustentada em um poder mágico. Logo, não consigo enxergar tal fato senão como um tapa na cara do feminismo, pois dá a entender que tudo o que aconteceu com Mulan foi sorte, eliminando o discurso de que a mulher tem condições para ser o que quiser.

Apesar de boas cenas de ação que fazem bom uso do cenário, Mulan (a personagem), mesmo que sem querer, é ofuscada por Xianniang, interpretada pela grande atriz chinesa Gong Li (que não entendo como que Hollywood até hoje não lhe deu o seu merecido valor), que é bem mais fabulosa e interessante, e dona de um discurso que gera mais empatia e compreensão. E como se não bastasse, mesmo tendo um povo e o mal para derrotar, Mulan só adere ao cabelo solto talvez para embelezar mais a filmagem do que para revelar o maior dos segredos, que, por sinal, não teve impacto algum.

Resumindo, não é exagero dizer que graças a um roteiro sem profundidade, Mulan foi uma pessoa qualquer, interpretada por Yifei Liu, que agora precisará acertar suas contas com o público, após ser "cancelada", devido a polêmicas opiniões sobre a luta pela democracia em Hong Kong. A trama buscou exageradamente o fator ousadia, num ponto em que as coisas claramente saíram do controle, e hoje amarga esse fracasso, inclusive na bilheteria da China, que já autorizou a retomada dos cinemas, e classificou o filme como uma obra que não representa a cultura do 3º maior país do mundo. Vamos ver se o futuro poderá conceder à querida personagem, uma reparação histórica, pela falta de honra que o live action lhe propôs.


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