Justiça seja feita, os Estados
Unidos deve sim ser respeitado como uma nação que sempre soube cultuar bem suas
figuras históricas. Muhammad Ali é, sem dúvida, o maior boxeador de
todos os tempos. Malcom X foi uma referência em ativismo pelos direitos dos
afrodescendentes e defensor do nacionalismo negro. Sam Cooke foi um cantor de
renome, e, para muitos, foi o responsável pela criação e popularização da soul
music. Jim Brown foi um artista e jogador de futebol americano, craque do
Cleveland e considerado um dos melhores da história. Com todos esses atributos,
nada melhor que tratar uma amizade entre os quatro como produto a ser
reproduzido na sétima arte, mas uma coisa é fato: nem só de camaradagem viveu a
relação entre os quatro.
Uma Noite em Miami é
roteirizado por Kemp Powers, baseado numa peça teatral homônima, de 2013,
escrita por ele. O filme traz na direção Regina King (vencedora do Oscar 2019
de Melhor Atriz Coadjuvante, por Se a Rua Beale Falasse), em seu primeiro
trabalho de destaque atrás das câmeras. No cinema, antes ela só havia dirigido
o documentário Story of a Village, em 2014. Valorizando a população afro
de maneira estrelar, ela se arrisca oferecendo situações clichês, para saber
contar vantagem em outros elementos e, assim, entregar um dos melhores filmes
de 2020.
Para a grande recepção que
recebeu no ano passado, durante o Festival de Veneza, não tem como não se
assustar em Uma Noite em Miami, com uma primeira cena em que um músico
negro esvazia a plateia de um salão destinado a brancos, escancarando um ato
manjado, que muitos filmes do gênero não abrem mão. Porém, a produção soube
usar uma estratégia em que fatos teoricamente falhos pudessem ser trabalhados,
mas que caíssem ligeiramente no esquecimento do público. Daí a eficiência do
montador Tariq Anwar (indicado ao Oscar com Beleza Americana e O
Discurso do Rei), que soube utilizar cortes rápidos e uniu bem os 4 principais
atos do prólogo, para provar que o filme tinha sim um boa essência. E logo de
cara, para o surto dos preconceituosos, tem-se um soco no estômago com o
retratar do racismo estrutural, descaradamente presente atrás do sorriso de
quem não se julga racista - o que torna a trama mais atual impossível,
mostrando a necessidade e as falhas do combate a esse mal.
Dando um equiparado destaque
aos 4 personagens centrais de Uma Noite em Miami, Regina King soube
apresentá-los de maneira objetiva, sem delongas desgastantes e com bastante
impacto, exibindo que dentro deles há algo bem maior do que aquilo que os levou
ao estrelato. Mas o que esperar desse encontro? Eles também são humanos, com
direito a se divertirem e se entreterem como amigos quaisquer. Mas será mesmo que
aquela realidade americana de mais de 50 anos atrás faria com que uma conversa
entre eles deixasse certos assuntos polêmicos passarem despercebidos? Lógico
que não. É por isso que Regina King se arrisca e os coloca entre 4 paredes,
quase que literalmente falando, e diálogos são conduzidos em meio a luta de
cada um e até mesmo em meio aos seus vacilos. O racismo é mais forte que
qualquer um possa imaginar, e como o próprio filme escancara, a situação atinge
a todos os negros, independentemente de condição financeira. Por acaso
"negros burgueses" (como o roteiro do longa indica) são poupados de
atos discriminatórios? Claro que não. Assim, a diretora aprimora os debates ali
presentes e os concentra por grande parte do tempo em um só ambiente, porém a
segurança dela é tão grande, que o ato longo consegue ficar interessante e nem
um pouco cansativo.
Aliando ganância, talento e
preconceito na pauta de uma rica discussão, Uma Noite em Miami apresenta-se
com um dos melhores elencos de 2020, com posturas surreais de dar uma outra
vida a personagens que marcaram uma geração na cultura americana. Porém, eu
tenho ressalva: a atuação de Leslie Odon Jr, como Sam Cooke, é espetacular, mas
eu não entendo o porquê de apenas ele estar sendo cotado ao Oscar 2021, no tocante
em que Eli Goree, Kingsley Ben-Adir e Aldis Hodge não estão por baixo. Todos
estão igualmente fantásticos, e em determinados momentos, Odon Jr é até
ofuscado. Será mesmo que ninguém tenha ficado impressionado com um diálogo em
que Ben-Adir e Hodge roubam a cena ao falarem sobre poder? A César o que é de
César, por favor.
Com questões importantes e trazendo diversas vertentes da questão racial, Uma Noite em Miami é um grande e necessário filme. "Em uma época de mártires e se eu tiver que ser um, será pela causa da irmandade. É a única coisa que pode salvar este país" - é com esta frase de Malcom X que o longa tem o seu desfecho, que emociona e também propõe uma outra reflexão, ao lembrar que até quem luta por um ideal humano, às vezes precisa também rever certos conceitos.
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