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terça-feira, 19 de setembro de 2017

BINGO - O REI DAS MANHÃS



BINGO - O REI DAS MANHÃS
DIREÇÃO: Daniel Rezende
ELENCO: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Domingos Montagner e Emanuelle Araujo


Augusto é um astro da pornochanchada, que sonha em crescer em sua carreira artística, mas em outros segmentos. Ele enxerga sua grande chance em um teste para ser palhaço em um programa infantil, mas precisa, a qualquer custo, esconder sua identidade de todo o país. O sucesso acaba mostrando que, por detrás de uma maquiagem circense, há um cidadão totalmente diferente e com diversos problemas que implicarão em muito com sua vida.


Pedindo perdão pelo trocadilho, foi no mínimo bizarra a notícia de que o lendário palhaço Bozo teria a sua vida retratada nas telonas. Mais precisamente o ator Arlindo Barreto, pois o astro infantil teve diversos intérpretes. Agora quando se observa que a direção do longa caberia ao grande Daniel Rezende (indicado ao Oscar de Melhor Montagem por Cidade de Deus), logo se notou que os contextos trabalhados seriam os mais cabíveis para o eficaz executar de uma cinebiografia. Feliz de quem teve essa constatação e viu o filme surpreender, positivamente falando.

Questões processuais impediram que nomes originais fossem usados (daí justifica-se o Bingo), mas o roteiro de Luiz Bolognesi (que este ano também assinou a obra-prima Como Nossos Pais) tem a perspicácia de reunir elementos suficientes para ambientar as situações e fazer o espectador, sem nenhuma dificuldade, identificar pessoas e empresas. Nesse tocante, apenas a cantora Gretchen teve seu nome trabalhado fielmente. Logo em seus primeiros instantes, Bingo – O Rei das Manhãs não se censura em mostrar um protagonista despido, o que para muitos poderia ser chocante, devido à conotação infantil que o personagem sugere, só que a obra não faz a mínima questão de atingir as crianças, por isso investe com louvor na pornochanchada, para exibir desde o seu princípio o primeiro embate psicológico existente em Augusto. E em meio a uma carreira artística vítima de preconceito, um desespero pelo auge, junto a papéis de figuração em empresas de renome, aliando tudo isso a uma mãe lendárias nas artes, mas que estava a viver o ostracismo, Daniel Rezende cria perfeitamente uma crise existencial, que acima de tudo provoca o espectador, e faz de toda aquela vida um verdadeiro jogo: às vezes temos certeza de que vamos conseguir, mas o tempo passa cada vez mais rápido e a vitória ainda não foi concretizada. A partir dessa questão, o medo ronda a todos e já passa a haver uma incógnita na frase que diz: “No final, tudo dá certo”.

O adentrar à trama do palhaço acaba por ser um retrato fiel de um sistema que muitos acham simples, mas que tem o poder de enganar a tudo e a todos. Já se começa pelo fato do país acabar por criar um poderio sobre um instrumento que não é nosso, e sim uma versão de algo estrangeiro. Daí aparece o Bingo, que tem que ser cópia fiel daquilo que os Estados Unidos produziram. Só que para dar certo, o filme mostra que não se deve haver o didatismo clichê de que cada país tem a sua cultura benéfica, e sim investe no jeitinho corrupto de ser de cada um dos brasileiros, ao quebrar toda a ética profissional e afrontar um chefe na presença, apenas aproveitando-se dele não entender a língua portuguesa, para alcançar o êxito na aprovação do teste. E isso não é uma afronta a moral, pelo contrário, só enriqueceu o filme.

Bingo – O Rei das Manhãs inicia um ato em que o boom dos programas infantis da década de 1980 é retratado. De fato, não seria fácil propagar um novo personagem, quando o SBT não demonstrava ameaça à Globo e à Manchete, que reinavam no segmento. E se ser respeitoso com o público com piadas como “a planta não fala porque ela é muda” não conseguiu arrancar gargalhadas daquele público, logo se viu que todos de inocentes não têm nada, e Bozo acabou sendo um porta-voz da gigantesca falta de inocência generalizada, ao ponto de, sem nenhum pudor, chamar um garoto de jumento, e botar as crianças para dançarem tresloucadamente ao som da rainha do rebolado e de músicas com letras ao estilo “Eu fui dar, mamãe”. Resultado de tudo isso: uma diretora evangélica horrorizada e um saudoso primeiro lugar no ibope, capaz de fazer com que qualquer um perca a compostura e jogue isso na cara de quem não lhe deu oportunidade anteriormente. Daniel Rezende monta uma trama que exibe falta de inocência incutida em todos, e que o clichê e os bons costumes estão longe de serem os principais ingredientes para o ápice. E isso não é de agora.

O foco à vida pessoal do Augusto, ao mesmo tempo que enfatiza um excelente pai, mesmo com alguns deslizes (inclusive graves), não esconde que o crescimento de sua moral na carreira se aliou a outras mudanças na vida dele, como o normal aumento no padrão de vida, e uma entrega maior à mulheres, álcool e drogas. Neste ponto, faz-se justo salientar a proibição que ele tinha de revelar a sua identidade, o que causou um sério transtorno nele, pois, como uma própria cena de Bingo – O Rei das Manhãs mostra, não ter sua fisionomia conhecida, o impedia de conseguir inúmeros privilégios que a fama dá a qualquer estrela, assim o peso psicológico que parecia ter acabado, volta e o levou a cometer os deslizes graves supracitados. O interessante é que Daniel Rezende trabalha isso como forma de não horrorizar, mas sim jogando na cara de todos, inclusive o espectador, de que todos seríamos capazes de cometer o mesmo absurdo. Por isso, não caberia julgamento.

Infelizmente a tolerância uma hora acaba, não sendo capaz de perdoar nem mesmo aqueles que trazem resultado na vida pessoal e profissional. O Bozo Augusto chegou ao fim, mas num tocante em que ele não poderia encarar isso como um fim de um ciclo, pois estava disposto a perdurar a ideia de sucesso entre as crianças. Recomeçar, em nenhuma circunstância é fácil, e a espetacular atuação de Vladimir Brichta mostrou autenticidade em todos os momentos de vida de Augusto (ou Arlindo Barreto), e a leveza exibida no ato religioso em seu derradeiro momento, traz um acalanto a quem acredita, apesar de tudo, que pode sim haver um final feliz, principalmente nesta trama, que faz de Daniel Rezende um verdadeiro patrimônio do cinema nacional, e que sem dúvida merece o status de melhor filme do ano.



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