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domingo, 29 de março de 2020

O POÇO



O POÇO
DIREÇÃO: Galder Gaztelu-Urrutia
ELENCO: Ivan Massagué, Zorion Eguileor e Antonio San Juan


Um lugar misterioso e uma detenção difícil de ser descrita com um poço terrivelmente profundo dão o tom para esse filme, onde duas pessoas reclusas encontram-se em cada nível, enquanto esperam a chegada da plataforma que trará alimentos para eles matarem a fome. Nessa indigesta luta para se manter vivo, há o sentimento de tentar fazer brotar, mesmo que minimamente, um até então utópico lado solidário.


A vitória do sul-coreano Parasita no Oscar 2020 de Melhor Filme foi como um acalanto na vida de milhões de pessoas que trabalham direta ou indiretamente com cinema ao redor do mundo, principalmente porque o globo ficou ciente, mais do que em qualquer outro momento, que existe cinema fora de Hollywood. E para quem gosta de prestigiar as obras internacionais, é mais que claro que todos tirem o chapéu para as produções espanholas, que não se limitam a Pedro Almodóvar, tampouco a Fernando Trueba, Alejandro Amenábar e Juan Antonio Bayona (todos mestres, por sinal). O lado positivo de tudo isso é a maneira como a Netflix tem, nos últimos anos, investido no talento espanhol, gerando resultados, como no brilhante filme Um Contratempo e nas superestimadas séries A Casa de Papel e Elite. O Poço é hoje a sensação entre aqueles fascinados por plataformas de streaming.

Para o diretor Galder Gaztelu-Urrutia, mais à vontade em sua carreira em filmes de curta-metragem, existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem. Tais fatores casam perfeitamente com as diversas vertentes da competitividade humana, onde fica bem claro, que, sem trocadilho, o fundo do poço torna-se ininterruptamente menos raso para quem menos favorecido for. Na claustrofobia, as perguntas desesperadoras se multiplicam tal qual a esperança se esvazia, e assim, a guerra pela sobrevivência se despe dos remorsos, no instante em que a acrofobia não exala a compaixão esperada, quando a queda, mais feia que o imaginável, atinge aqueles com quem dividimos o espaço.

O curioso de O Poço é a capacidade de fazer com que o óbvio espante, inclusive quando se parte em busca daquilo que lhe foi imoralmente tirado, e, como se não bastasse, você acaba sendo criminosamente violado por isso. O que fazer num espaço pequeno, ao lado de quem em muito se difere da gente? Para o filme, as discussões são uma caixinha de surpresas, onde não se sabe nem para onde vai a concepção da arma que os "povos de cima" estão munidos. De fato, eles têm o dom de parar e até de calar os oprimidos, mas se sabe que o castigo vindo por parte deles, ocorre até quando o subalterno se aquieta, pois os membros desse grupo continuam caindo no poço, como se fosse um pesadelo em que a hora do morte não faz com que ninguém acorde.

O andar da carruagem faz com que os inimigos e os supostos amigos deem as caras, numa realidade carcerária que, caso equiparada à liberdade, seria como se fosse a burguesia julgando o proletariado e a sua capacidade de produção. A idas e vindas da existência nem sempre são positivas, pois é muito fácil crescer o número de pessoas que entendem que você está com fome, mas, diante de casos, cresce na mesma proporção o número de pessoas que não querem te ouvir. Em nada econômicos atos de escancarar a desigualdade de classes em forma de prisão, O Poço parece ser bem maior e mais angustiante que seus 90 minutos de duração - pouco para os padrões. A trama sabe que todos estão vulneráveis a uma reclusão, mesmo quando há a digna liberdade, e seguindo essa linha de pensamento, ou todos aderem a "lei da selva" ou ficam cientes daquilo que, de fato, é necessário para sobreviver.

Acontece que, mesmo sendo merecedor do sucesso que está fazendo, onde é perfeitamente possível ser assemelhado à atual pandemia do coronavírus, O Poço não chega a ser uma obra perfeita. É fato que a película espanhola usa e abusa da metáfora, e, diante desse conceito, longe de mim querer taxar um loga como pioneiro e ser injusto com aqueles que vieram anteriormente e tudo que representaram e representam para a arte, mas indico Ensaio sobre a Cegueira, de 2008, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, como o primeiro filme que me impactou nesse sentido. É necessário em tramas do tipo, fazer com que a figura de linguagem que domina o seu roteiro seja detectada por todos, e mesmo que haja uma variedade de interpretações, elas devem se encontrar no mesmo sentido, fazendo valer aquilo que realmente o longa quis escancarar. Admite-se que O Poço não mergulha em complexidades, mas deixa arestas abertas em que nem todo símbolo é captável, e permite com que uma significância exista a partir do momento em que o espectador cria livremente uma explicação para tudo que está havendo, sem se deixar ser possuído por ela de maneira natural e sem se preocupar se, de fato, ela está correta. O filme falhou nesse ponto, mas também é falho julgar como não merecido o seu sucesso.


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